Picó: a cultura do sound system que virou patrimônio vivo da Colômbia.
São duas horas da manhã de um domingo nos arredores de Barranquilla, na Colômbia, onde centenas de pessoas dançam nas ruas ao som de três picós diferentes; as tradicionais mesas de som do país, também conhecidas como picó sound systems.
De perto, cada picó é barulhento o suficiente para abafar o som do DJ vizinho. Entre eles surge uma mistura de sons tão psicodélicos quanto aos desenhos que cobrem as caixas de som divertidos acima de nossas cabeças. Lasers, mudanças de tom ensurdecedoras, quantidades absurdas de rum e garrafas de Aguila, uma cerveja barata local, trazem mais intensidade à cena. Conhecidas como verbenas, as festas abertas se espalharam pela costa caribenha da Colômbia no início dos anos 50, quando a cultura dos picós nasceu em Cartagena. Naquela época, claro, não existiam lasers. Mas o conceito era o mesmo de hoje.

Quando os picós começaram a ser construídos, tudo, desde as imensas caixas de som até amplificadores valvulados, era feito à mão. Cada bairro de classe operária tinha um só dono de picó, que dava festas na rua e transformava sua própria casa (ou a de um vizinho) em um pequeno bar improvisado. Cada caixa de baixo recebeu um mural com motivos tropicais, um nome e um slogan divertido.
História e Evolução
A cultura do picó teve início na década de 1930, quando a música chegava às classes populares através de rádios portáteis. Mas a verdadeira revolução veio nas décadas de 50 e 60, quando os primeiros toca discos chegaram ao país. Marinheiros e viajantes que passavam pelo "porto dourado" de Barranquilla traziam vinis raros da África, de Cuba e de outras ilhas do Caribe.

Hoje a cultura do picó ainda possui adeptos ao longo da costa, sobretudo em Barranquilla, uma cidade portuária e industrial que foi a porta de entrada dos primeiros lotes de discos africanos que, junto dos vinhos locais e caribenhos, formaram a trilha sonora de uma cultura musical única.
A Arte do Picó
Os picós são mais do que simples equipamentos de som - eles são obras de arte sonora e visual. O equipamento evoluiu bastante ao longo do tempo, passando por três grandes fases:
Era dos Escaparates: Até os anos 80, os picós eram caixas de som monolíticas e imponentes, com adornos de madeira e grandes "cornetas" para o som agudo.
Era do Tipo Concerto: Nos dias de hoje, com tecnologia digital e sistemas de som profissionais criando verdadeiros palcos com iluminação complexa.
Os picós são famosos pelos seus murais pintados, que costumam incluir cenas tropicais coloridas, figuras simbólicas como Fidel Castro e Che Guevara, cores neon e muito brilho. Essa "pintura picotera" é central para a identidade de cada sistema de som, com artistas como William Gutiérrez Peñaloza criando obras em um estilo que ele próprio descreve como "ingênuo e folclórico".



Os DJs e a Competição
Os DJs locais, conhecidos como picoteros, se tornaram os guardiões de um novo repertório musical. Para manter a exclusividade, eles frequentemente raspavam os rótulos dos vinis e inventavam nomes próprios para as músicas, uma prática que alimentava a competição entre os sistemas de som.
A busca por "exclusivas" (faixas que somente o seu picó possuía) era intensa. Apenas quando a música se tornava extremamente popular, seu nome original era revelado. Esta rivalidade criativa impulsionou gêneros como a champeta, a terapia e o guarapo.

Além da Festa: Um Fenômeno Cultural
O que mais encanta nessa cultura não são os murais incríveis, mas sim a revelação de que um sistema de som cultural não existia apenas na Jamaica antes de se espalhar pelo mundo. Africanos e afro-latinos na Colômbia, também em resposta à realidade pós-colonial e pós-escravista, inventaram uma manifestação cultural complexa quase que idêntica ao sound system jamaicano.
Ambos os países desenvolveram sua criatividade ao unir engenharia elétrica DIY, baixos poderosos e a competitividade ligada à cultura de DJs para criar formas de arte associadas às tecnologias emergentes. As festas de rua criaram oportunidades econômicas, serviram como espaço de sócio-político e cumpriram o papel de refúgio de sofrimentos diários.

Embora compartilhem semelhanças com o soundsystem jamaicano - como o surgimento em comunidades marginalizadas e a repressão por parte das autoridades - os picós colombianos têm sua própria identidade. Enquanto na Jamaica as letras frequentemente incorporam mensagens de resistência política, na Colômbia o foco está mais na celebração das raízes africanas e na expressão de identidade cultural através da dança e da festa.
Mesmo assim, essa cultura enfrentou resistência ao longo dos anos. As autoridades frequentemente tentavam reprimir os soundsystems, associando-os a problemas sociais. Esta repressão acabou transformando o picó em um símbolo de resistência, onde a música e a festa se tornaram atos de afirmação cultural.

As festas de rua embaladas ao som dos sistemas de som, tanto em sua versão jamaicana quanto colombiana, são exemplos da tecnologia criativa e revolucionária africana em seu nível mais acessível. Elas são mais do que festas: são rituais primitivos e alquímicos da Palavra, do Som e do Poder, espaços radicais onde novas narrativas de liberdade são escritas e reescritas entre corpos que dançam para além da diáspora trans-atlântica.
Alguns Picós, como o Salsa de Puerto Rico, ainda possuem amplificadores valvulados, mantendo viva uma tradição que continua a ecoar nas noites caribenhas da Colômbia.
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