O fluxo enigmático de Makalister em Poetas no Topo 1

O fluxo enigmático de Makalister em Poetas no Topo 1

Entre Fellini, Kieślowski e a vida periférica, um dos versos mais densos do rap nacional constrói um labirinto de imagens e referências.

Quando Poetas no Topo 1 chegou em 2016, a cypher reuniu nomes que viriam a moldar a nova cena do rap brasileiro. Entre as entradas de Djonga, BK, Sant, Menestrel e JXNXS, o verso de Makalister destoava pela densidade. Não apenas o impacto imediato, era um fluxo de imagens, referências e questionamentos que se aproximava mais de um monólogo cinematográfico do que de uma sequência de rimas. 

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“O reflexo vira matéria, atinge a idade / Da invisível grade, a porta só abre por fora” abre o verso já no registro de aprisionamento metafísico. O reflexo, normalmente intangível, se torna matéria, realidade concreta, e essa transformação é associada à “idade da invisível grade”, metáfora para quando a consciência da estrutura social e de suas limitações se torna inevitável. 

A porta que “só abre por fora” é o símbolo da falta de autonomia, de estar preso a um sistema cuja saída depende de outro.

Em “São Noites de Cabíria, sob o céu do enigma”, Makalister evoca o filme de Fellini sobre uma mulher solitária e resiliente, colocando a si mesmo sob um “céu do enigma”,  um mundo em que nada é totalmente decifrável e parte de uma solidão, mostrada no filme. 

Noites de Cabíria - 1957.

“Escondo no planeta algumas soluções de fácil uso” sugere que existem respostas simples para viver nesse mundo, mas que o eu-lírico não entrega por estar tudo abaixo do nosso nariz.

A sequência “Esbarro nos lábios brutos, arranhados como fracos vinis, yo / Cansados de só ver navios” combina textura física com expressão idiomática. Os “lábios brutos” e “fracos vinis” desgastados remetem a relações ásperas e à repetição que corrói, utilizando também da ambiguidade na fala para criar o desgaste e criar ideias antagônicas dividindo o mesmo espaço. “Cansado de ver navios” completa a imagem de frustração e espera inútil.

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“Nas areias do templo, no sinal vermelho / O para-brisa reflete, como posso me esconder de mim mesmo?” mistura espaços sagrados e cotidianos, construindo um cenário onde o ritual encontra a rotina. O reflexo no para-brisa é metáfora para o inevitável confronto com a própria imagem.

No trecho “Sol mostarda, viver atrasa, sexta-feira em casa / Na cabeça ‘Não Amarás’ e ‘Decálogo’”, a cor “mostarda” insere uma nota visual precisa, enquanto “viver atrasa” expressa lentidão e suspensão. As referências ao cinema de Krzysztof Kieślowski, com Não Amarás e Decálogo, inserem o verso em um diálogo com dilemas morais e existenciais. Nesse momento, Makalister cria todo um cenário. Uma sexta feira em casa, com um sol mostarda, pensando sobre os dilemas e pensamentos no entorno de Não Amarás e Decálogo, sobre o existencialismo, o questionamento das coisas e o atraso, em ver tudo acontecer e ir com os próprios olhos.

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“Paredes falam muito sobre mim e sobre os vacilos que ando cometendo” é a confissão de quem se sente observado pelo próprio espaço que habita. 

“A pureza decola no trânsito lento / E o pensamento no Ettore Scola / As coisas perdem suas cores agora” constrói um paradoxo entre algo que deveria ser leve e livre e a realidade travada, enquanto Ettore Scola traz à cena seu olhar sobre o cotidiano e a política, e primordialmente sobre relacionar diretamente a construção monocromática dos filmes de Scola.

Quando diz “As coisas perdem suas cores agora / Eu não fui e não vi, dos detalhes preferi nem saber”, o verso se torna monocromático e distante. O bar em que “nem pensei em morrer” transforma a ausência de pensamentos suicidas em evento digno de nota, revelando a presença velada da morte como assunto constante.

A afirmação “Porque viver não se pensa / Ao menos não vale o esforço” desloca a reflexão filosófica para o pragmatismo, a vida é para ser vivida, não sobre analisada. Isso se fecha em “Vale o que expira / O que sobra do ser”, exaltando o efêmero e o essencial.

O verso culmina em “Botar na tela o sangue da carne ambulante / Ser a latência, jamais operado pelos sonhos de alguém, yo”. Aqui, a intenção artística é exposta, documentar a vida em sua crueza e recusar ser instrumento das ambições alheias. “Latência” é potência guardada, energia pronta para agir quando necessário, mas que permanece independente.

O verso de Makalister em Poetas no Topo 1: é um bloco autossuficiente de cinema, filosofia e autobiografia. É um registro que bebe do neorrealismo, da observação política e da crônica urbana sem se fixar em nenhum deles. Seu ritmo é irregular, sua lógica é fragmentada, e é justamente aí que reside sua força. Ao invés de buscar clareza imediata, Makalister constrói um espaço de leitura que exige tempo e disposição, e que, quase dez anos depois, ainda permanece como um dos momentos mais singulares do rap nacional contemporâneo.


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