O auge e a queda da revista Vice

O auge e a queda da revista Vice

A Vice sempre se vendeu como a voz da contracultura, mas acabou virando exemplo de como um império midiático pode desmoronar quando o espírito rebelde vira produto. O documentário Vice Is Broke (2025), dirigido por Eddie Huang, mergulha nesse colapso que parecia improvável, mas que expôs contradições latentes desde o início.

O começo foi em 1994, no Canadá, como uma revista punk que falava de música underground, drogas, sexo e tudo que soava proibido ou incômodo para o mainstream. Era direta, crua, sem filtro, e isso conquistou jovens millennials que buscavam uma mídia que olhasse o mundo de frente, sem medo de cutucar feridas. Rapidamente, a Vice virou mais que revista: virou referência, quase uma “bíblia” para quem queria romper com a lógica estabelecida.

Com o tempo, a revista ganhou investidores de peso. Disney, Fox, TPG, nomes do grande capital que injetaram milhões e transformaram a Vice em um conglomerado que parecia destinado a dominar o mercado. Em 2017, a empresa foi avaliada em US$ 5,7 bilhões. A expansão foi de tudo um pouco: estúdios de TV, produções de documentário, site noticioso, até cerveja artesanal com a marca Vice estampada.

Mas o brilho não durou. Em maio de 2023, a companhia entrou com pedido de proteção contra falência nos Estados Unidos, declarando dívidas que podiam chegar a US$ 1 bilhão. No fim, foi vendida por apenas US$ 350 milhões a um grupo liderado pela Fortress Investment Group, um valor simbólico, perto do que já havia representado. As demissões em massa e o fim do programa Vice News Tonight só reforçaram que o império estava ruindo.

What Happened to VICE? (From $5.7B to Bankruptcy)

O fator determinante para a erosão da credibilidade da Vice foi marcada por confluência de contradições. A empresa que se dizia progressista foi denunciada por manter uma cultura tóxica, marcada por assédio e por um ambiente predominantemente masculino. Fechava contratos milionários com Disney e Fox enquanto pregava independência. Chegou a aceitar dinheiro do governo saudita para conteúdo patrocinado, gesto que feriu de vez sua credibilidade. O jornalismo que um dia foi ousado deu lugar a títulos chamativos e matérias superficiais.

Esse enfraquecimento da matriz se traduziu de modos diferentes em cada mercado. Onde a Vice atuava com redações próprias, houve queda direta no financiamento de reportagens longas, suspensão ou redução de back-office e encolhimento das equipes fixas. Onde operava por licenciamento ou em parceria com grupos locais, a alteração veio pela revisão de contratos, diminuição do repasse de conteúdo e, em alguns casos, pela decisão do parceiro local de encerrar as operações da marca por falta de viabilidade.

No Brasil, por exemplo, as ramificações foram práticas e sutis ao mesmo tempo. A Vice havia firmado acordos para distribuição de conteúdo em TV com players locais, o que manteve parte da presença da marca enquanto houvesse interesse comercial. Já a operação jornalística local sentiu o baque pela redução de verba e pela diminuição no volume de pautas sustentadas pela casa-mãe: menos reportagens de fôlego, menos deslocamentos para apuração e maior dependência de freelancers e projetos pontuais.

Na Austrália o impacto foi mais explícito: operadores locais que mantinham títulos sob licença optaram por interromper publicações da marca diante da incerteza e da queda de receita, mostrando um caminho que outros mercados poderiam seguir caso a relação custo-benefício deixasse de existir para o parceiro regional. Esse exemplo ilustra bem como um problema central pode transformar-se numa decisão prática de mercado; não apenas editorial.

No Reino Unido, México e em outros pontos onde a Vice mantinha escritórios, a sensação foi parecida: equipes europeias e latino-americanas viram orçamentos minguarem, projetos longos perderem prioridade e um movimento claro de reestruturação. Em muitos casos, o suporte para investigações e grandes reportagens foi substituído por produções menores, conteúdos licenciados ou iniciativas pontuais de estúdio, reduzindo a presença editorial independente que caracterizou a marca em sua ascensão.

Para quem consumia Vice localmente, a mudança foi clara: menos jornalismo investigativo diário, maior irregularidade na publicação de matérias, e uma oferta que passou a privilegiar conteúdos de menor custo e formatos voltados para parcerias comerciais. Para quem produzia, isso significou demissões, perda de contratos e um cenário de trabalho mais precário, revertendo o ciclo de investimento que havia alimentado redes de correspondentes e freelancers em muitos países.

Culturalmente, a Vice foi símbolo de um tempo. Nos anos 2000 e 2010, soube falar diretamente com jovens, traduzindo a rua, a música e a contracultura em matérias que circulavam pelo mundo digital. Chegou a registrar 350 milhões de acessos mensais em 2020. Mas a audiência envelheceu, fragmentou, e o que era vanguarda virou repetição. Vieram acusações de apropriação cultural, denúncias internas e uma sensação crescente de que a marca já não falava a mesma língua da nova geração.

No fim das contas, a Vice se tornou metáfora da própria geração millennial: cheia de contradições, capaz de criar ondas culturais intensas, mas incapaz de sustentar o mesmo ritmo quando o jogo virou empresarial. Como resumiu o The Guardian, “coolness não é recurso renovável” — e essa talvez seja a frase que melhor encerra a trajetória de uma marca que, por anos, parecia indestrutível.


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