Inacabada, mas eterna: a obra que Keith Haring não terminou

Inacabada, mas eterna: a obra que Keith Haring não terminou

Por volta do fim dos anos 80, o artista Keith Haring tinha consciência de que sua jornada infelizmente estava chegando ao fim. Após ser diagnosticado com HIV em uma época onde a epidemia de AIDS se espalhava sem controle, ele manteve sua paixão pela pintura até seus últimos dias.

Em 1990, pouco antes de falecer aos 31 anos, Haring começou a criar uma obra que jamais terminaria e que, ironicamente, se transformaria em uma de seus trabalhos visuais mais impactantes: Unfinished Painting (Pintura Inacabada).

Keith Haring retratado com a "Pintura Inacabada" ao fundo. Crédito: National Portrait Gallery.

A obra mede apenas um metro por um metro, mas transmite um silêncio que ressoa profundamente até hoje. Só uma parte dela foi pintada. O vazio comunica. E sua mensagem é incrivelmente humana.

A área em branco na tela representa muito mais do que uma simples interrupção ou pausa. Ela personifica vidas, obras e perspectivas que foram interrompidas de forma brusca. Ao optar por deixar grande parte da pintura sem cores, Haring cria uma representação simbólica da própria vida interrompida: a dele e a de inúmeras outras pessoas impactadas pela AIDS.

É uma ausência repleta de significado: não apenas o término, mas tudo aquilo que poderia ter sido feito. Essa característica de não ser completa conversa com a ideia de que a arte, tal qual a vida, não tem que estar finalizada para ter seu valor.

A força da obra está no que ela não mostra, no que ela sugere, no que ela nos obriga a imaginar. A ausência de tinta vira um oceano de lembranças, a falta de cor como denúncia, a falta de forma como protesto silencioso. E esse silêncio, acredite, soa forte.

Passados mais de 30 anos do falecimento de Haring, a arte dele ressurgiu em algumas pautas. Em uma tentativa de "homenagem", uma versão gerada por inteligência artificial preencheu digitalmente o quadro, imitando o estilo do artista e completando o espaço em branco. A repercussão foi imediata e majoritariamente negativa.

Pintura inacabada de Keith Haring (à esquerda) e versão gerada por IA (à direita).

A ideia de acabar a obra com a ajuda da de IA gerou uma certa discórdia, mas a maior parte do público reagiu com indignação. Para muitos, "completar" ou "finalizar" a obra é um desrespeito ao significado profundo da ausência. A obra não está incompleta por acidente, mas por escolha. Ao tentar terminar o que Haring deixou aberto, essa interferência apaga a mensagem, silencia o protesto, esvazia o significado. Afinal, a arte vai além da estética.

Ela é contexto, propósito e trajetória. E uma inteligência artificial, por mais avançada que seja, não vivencia as experiências humanas que formaram os traços daquela tela. A tentativa de preenchê-la desconsidera o luto coletivo, a luta política e a dor pessoal que a obra carrega.

Keith Haring faleceu precocemente, mas sua arte permanece viva e intensa. Sua obra não termina com sua morte: ela permanece viva nos muros, nas ruas, nas galerias e na memória afetiva de diversas gerações.

Unfinished Painting é, de forma paradoxal, uma de suas declarações mais abrangentes. Porque evidencia que existe beleza na interrupção, há força no que está ausente e há continuidade mesmo no término.

A pintura inacabada não necessita de ajustes ou complementos. Ela por si só já expressa tudo: a vida pode chegar ao fim, mas a arte ainda persiste. Que o silêncio também se expressa. Que existe, na ausência, uma forma de presença que nem o tempo nem a tecnologia são capazes de substituir.