Hermes Trismegisto e a força invisível por trás da alquimia musical de Jorge Ben Jor

Jorge Ben mergulhou de cabeça num campo que nunca havia sido cruzado com música brasileira daquela forma: a alquimia.

Hermes Trismegisto e a força invisível por trás da alquimia musical de Jorge Ben Jor

Em 1974, Jorge Ben Jor lançou um disco que ninguém esperava. Depois de flertar com o soul, o samba-rock e o balanço solar de sempre, ele mergulhou de cabeça num campo que nunca havia sido cruzado com música brasileira daquela forma: a alquimia. A Tábua de Esmeralda é, até hoje, um ponto fora da curva, uma espécie de relicário esotérico que mistura samba, ocultismo, referências filosóficas e religiosidade de rua. Um disco que soa quase como um livro sagrado.

Jorge Ben - A Tábua de Esmeralda (1974).

Uma obra que parece ter sido escrita com os pés no Brasil do milagre econômico, mas com a cabeça orbitando em lugares que misturam alquimia, espiritualidade africana, Rosa-Cruz, filosofia oriental, fé cristã e cultura de rua. E é justamente por essa colisão de universos que o disco se tornou um dos mais complexos e reverenciados de sua discografia.

O nome do álbum vem da Tabula Smaragdina, um texto curto e enigmático atribuído a Hermes Trismegisto, figura lendária que funde três entidades: o Deus grego Hermes, o egípcio Thoth e um sábio alquimista. Esse Hermes "três vezes grande" é tido como o pai da sabedoria oculta. É a ponte entre céu e terra, entre ciência e espiritualidade.

E é justamente dele que Jorge fala, direta e indiretamente, em uma das faixas mais densas do álbum: “Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda”.

A música é quase uma invocação. Um cântico sem refrão, conduzido por um violão que parece empurrar palavras como se fossem elementos de um ritual. Jorge não tenta explicar Hermes. Ele evoca. Ele canta os nomes, os símbolos, as ideias, como quem tem ciência de que nem tudo deve ser traduzido. Deve-se apenas cantar.

O sol é seu pai 
A lua é sua mãe 
O vento o trouxe em seu ventre
 A terra é sua nutriz 
E receptáculo

A letra evoca a ideia de uma unidade fundamental entre todas as coisas, onde o sol, a lua, o vento e a terra são vistos como forças criadoras e sustentadoras da vida. Essa ideia remete aos princípios da alquimia e do hermetismo, que buscam a compreensão da natureza e da relação entre o macrocosmo e o microcosmo.

A tábua de esmeralda diz sobre a divisão do que nos compõe relacionado a formas e elementos terrestres.

"Tu separarás a terra do fogo e o sutil do espesso"

Essa é uma metáfora alquímica. Na alquimia, separar "terra do fogo" e "sutil do espesso" não é sobre elementos literais, mas sobre distinguir o essencial do superficial, o elevado do bruto. Em termos da alquimia, a terra e o fogo representam o corpo e o espírito, enquanto o sutil e o espesso seria o mental e o físico.

É uma convocação à refinação interior, de separar o ego das virtudes, o caos da clareza. Na prática espiritual, significa depurar a mente, o corpo e o espírito.

"Docemente, com grande desvelo"

Aqui Hermes orienta que essa separação deve ser feita com cuidado e zelo. Não é um processo violento ou impulsivo, é um trabalho artesanal de transformação.

No caminho espiritual (e até criativo), isso fala sobre auto-observação profunda e paciência com a própria evolução.

"Pois Ele ascende da terra e descende do céu"

O puro hermetismo é abordado aqui. Hermes trata muito da unidade entre os planos. O que é "Ele"? Pode ser o espírito, a força vital, o princípio alquímico (como o mercúrio filosófico), ou o próprio ser humano como elo entre matéria e espírito. Ainda mais por, ao menos nas letras encontradas na internet, a palavra ser acompanhada da primeira letra maiúscula, como um substantivo próprio, sinalizando como se fosse a utilização para Deus.

A ascensão da terra simboliza a elevação da matéria bruta, enquanto a descida do céu representa o espírito se manifestando no mundo material. É o ciclo da existência, do sagrado encarnado.

"E recebe a força das coisas superiores e das coisas inferiores"

Isso fecha o ciclo. O verdadeiro poder, diz Hermes, vem do equilíbrio entre os opostos.

Superior e inferior, espiritual e físico, céu e chão. O alquimista verdadeiro é aquele que se transforma ao integrar as duas forças, não negando nenhuma.

A letra fala em “transmutação da matéria” e “princípios universais”, fazendo referência direta aos preceitos herméticos que moldaram não só a alquimia, mas boa parte do esoterismo ocidental. “O que está em cima é como o que está embaixo”, por exemplo, é uma das frases mais repetidas da Tábua de Esmeralda, e está presente na música como um mantra.

Deus grego Hermes.

E ao mesmo tempo em que evoca Hermes, Jorge Ben Jor costura camadas que vão muito além do ocultismo europeu. Ele associa esses símbolos a ancestralidades brasileiras e africanas, traduzindo o que seria o hermetismo para uma linguagem que flerta com o candomblé, com o sincretismo popular, com a fé que se constrói em casa, na rua, no corpo. É espiritualidade em seu estado bruto.

A própria escolha de mergulhar nesse universo em 1974 já diz muito. O Brasil estava sob ditadura, e Jorge falava de “outras dimensões”, “forças ocultas” e “sabedorias secretas” enquanto muitos artistas buscavam metáforas mais políticas. Mas A Tábua de Esmeralda é política por outros caminhos. Ao colocar o conhecimento ancestral, oculto e periférico como centro do discurso, Jorge inverte a lógica colonial do saber.

Outro ponto interessante é como a música não explica nada. Não há didatismo. Jorge joga as referências como quem confia no ouvinte. Como quem sabe que parte da beleza está justamente em não traduzir o sagrado. Quem quiser entender, que vá atrás. Que pesquise. Que leia, escute, e resulte em coisas como por exemplo, esse texto.

Hoje, quase 50 anos depois, A Tábua de Esmeralda segue sendo um ponto fora da curva. Um álbum que traçou um paralelo sobre a história, pesquisa e a discografia de Jorge Ben Jor. E essa música, em especial, é talvez o coração do disco.


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