Corridos mexicanos e a representação do sangue latinoamericano

Corridos mexicanos e a representação do sangue latinoamericano

É difícil pensar em outro gênero musical que tenha atravessado tantas camadas sociais, fronteiras geográficas e questões políticas como os corridos mexicanos. Mais do que um estilo, os corridos são uma narrativa cantada e, talvez por isso, hoje ocupam uma posição ambígua na cultura latinoamericana.

Ao mesmo tempo em que acumulam milhões de plays, recebem censura estatal. Crescem no mainstream global enquanto tratam da marginalidade local. Com letras que falam de honra, morte, poder e fuga, os corridos funcionam como crônica de um continente em crise, onde a ficção já não se separa mais do noticiário.

Desde que o corrido surgiu como forma oral de contar as histórias da Revolução Mexicana, esse gênero musical foi panorama e arquivo de uma cultura que se recusa a desaparecer. Século XIX, vozes do povo narrando heróis e traidores. Com a urbanização e o contrabando na fronteira nos anos 30 e 40, o ritmo virou melodrama rural. E, nas décadas seguintes, as letras mudaram de heróis revolucionários para traficantes do tráfico. Surgem os narcocorridos: subgênero que canta o dinheiro fácil, a violência explícita e o poder paralelo que crescia nas sombras do Estado.

Hoje, o prefixo “narco” colado ao gênero ajuda a vender manchetes, mas também esconde a complexidade da história. Nem todo corrido é sobre tráfico. Nem todo narcocorrido é apologia. Como explica o pesquisador Juan Carlos Ramírez‑Pimienta, o corrido é, antes de tudo, um gênero narrativo enraizado na memória popular e na crítica social. Mas a proibição sistemática em vários estados mexicanos só reforça a leitura reducionista: a de que se trata de música violenta, perigosa, subversiva. E é justamente por ser subversiva que ela sobrevive.

O que torna o fenômeno ainda mais complexo é o salto recente para o circuito internacional. A popularização dos corridos tumbados, uma vertente que mistura corrido tradicional com trap, hip-hop e reggaeton, alterou a rota. Agora, os artistas que nasceram em contextos periféricos cantam para públicos globais. Figuras como Peso Pluma, Fuerza Regida, Natanael Cano e o grupo Clave Especial, de Salinas (Califórnia), estouraram em playlists no México, nos EUA, no Brasil. A maior parte da audiência sequer entende o espanhol. Consome-se o ritmo, o imaginário visual, o código estético. Mas não a história contada.

É nesse ponto que os corridos ganham contorno latinoamericano. A estética tumbada é híbrida, urbana e exagerada. Combina sombrero mariachi com óculos de grife, fuzil com camiseta de marca, gírias de bairro com nome de celebridade. As letras tratam da dor como destino, do luxo como vingança, da marginalidade como identidade. Muitos músicos jovens não enxergam a música como apologia, mas como resistência: cantar sobre sangue é narrar o que se vive, e não o que se deseja. É uma tentativa de devolver controle a quem nunca o teve.

Um caso emblemático é o de Natanael Cano, tido como um dos criadores dos corridos tumbados. Ao mesmo tempo em que atingia o sucesso internacional, o cantor foi alvo de ameaças de morte por parte do Cartel Jalisco Nueva Generación. Segundo reportagens locais, algumas de suas menções em músicas foram vistas como provocação. O artista, então, passou a circular com escolta armada. E o que poderia parecer só mais um episódio da violência mexicana vira algo mais profundo: até que ponto a arte pode existir sem ser tomada como afronta? E quando o artista canta o que acontece, ele está sendo cúmplice ou cronista?

A censura governamental aos corridos, principalmente diante de shows com imagens de líderes de cartel como El Mencho ou El Chapo, revela um tipo de resposta simbólica. Os governos não interrompem o ciclo da violência. Apenas punem quem a nomeia. O resultado é o oposto do esperado: quanto mais censura, mais relevância simbólica.

É por isso que associar corridos mexicanos exclusivamente ao narcotráfico é reduzir seu alcance. Eles são narrativas de sangue, sim. Mas também de ausência estatal, de memória de comunidade, de necessidade de registro. São hinos narrativos sobre identidade latino-americana — uma voz que não se cala mesmo quando o silêncio é exigido. E no fundo, essa produção cultural funciona como espelho distorcido da América: sangrada, invisível e resistente.


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