Como "O Iluminado" Destaca a Deterioração Gradual das Relações Familiares

Como "O Iluminado" Destaca a Deterioração Gradual das Relações Familiares

Existe uma frieza em "O Iluminado" de 1980, que vai além do clima frio do Colorado e atinge a frieza moral de um lugar desprovido de afeto familiar. Stanley Kubrick não nos apresenta um filme de terror sobre aparições fantasmagóricas, mas sim a ruína de toda uma base social: a família americana tradicional. O Hotel Overlook atua menos como um local assombrado e mais como um reflexo distorcido. A maldade não surge do exterior; ela reside ali desde o início.

Jack Torrance não se torna insano de repente. Ele apenas se desprende da camada superficial que o mantinha em equilíbrio. O hotel age como um intensificador: o isolamento extremo e o contato com o seu "eu" do passado provocam a explosão de tudo o que estava reprimido (a fúria, a mágoa, a violência ignorada). A família, confinada, pensa estar escapando de suas dificuldades, quando na verdade se aprisiona junto a elas. A ida ao Overlook representa um acordo tácito de autoengano.

Diferentemente de Stephen King, Kubrick não retrata um "bom homem" sendo corrompido por influências externas. O Jack interpretado por Nicholson já possui a semente da maldade em seu interior; isso fica claro durante o filme quando são citadas as suas atitudes no passado e seu vício com o álcool. O hotel apenas intensifica o que já existe dentro dele. Por essa razão, a insanidade em "O Iluminado" não é uma queda, mas sim um desmascaramento.

O próprio espaço do filme é o primeiro indício desse desmascaramento. O hotel Overlook é uma construção arquitetônica inviável, pensada para desorientar o observador. Locais que desafiam a lógica, corredores que parecem mais um caminho sem fim. A sensação de aprisionamento é intencional. Kubrick e o designer Roy Walker constroem um labirinto mental, um diagrama da mente de Jack. O público, assim como os personagens, perde a noção de direção. A casa é uma mente despedaçada materializada em um hotel.

A vastidão do espaço impressiona, com sua simetria e silêncio quase opressivos. Essa imensidão, paradoxalmente, provoca uma sensação de confinamento. Kubrick retrata os Torrance como figuras diminutas, quase perdidas nesse vazio. Cada cena no Colorado Lounge irradia uma profunda solidão, um reflexo do distanciamento entre os membros da família. A vastidão do cenário espelha a distância emocional que os separa.

O Overlook também se comunica por meio de seus padrões visuais: o carpete com seus hexágonos que remetem à um labirinto, os azulejos coloridos, os corredores que se repetem infinitamente. Tudo ali remete à geometria e a uma sensação de aprisionamento. Quando Danny explora o hotel com seu triciclo, ele percorre uma espécie de teia. O chão sob suas rodas se revela como uma armadilha visual, um prenúncio do labirinto que virá.

O vermelho, uma cor que ressurge constantemente, aparece como uma memória reprimida. Ele se manifesta nas roupas, no banheiro do salão de festas e no sangue que jorra do elevador. Essa cor expressa, de forma veemente, o que os personagens mantêm em silêncio: a violência está prestes a explodir. O hotel se revela como uma ferida exposta, onde o sangue não é apenas uma figura de linguagem, mas sim uma herança carregada de significado.

Antes de iniciar as filmagens, Kubrick se aprofundou na obra de Freud. Para o psicanalista, o terror cresce quando o familiar se transforma em algo perturbador e estranho (o "Unheimliche"). O Overlook personifica essa transformação, o lar que se torna inabitável. As aparições que surgem (Lloyd, o barman, e Grady, o zelador) são manifestações do inconsciente reprimido. Jack dialoga, na verdade, com seu próprio reflexo. Cada conversa se revela como um monólogo interno.

No salão dourado, ele se embriaga da própria negação. No banheiro vermelho, justifica o ato extremo. No quarto 237, o desejo e a morte se misturam. E no labirinto final, ele encontra seu fim dentro do seu próprio sistema de controle. Jack cria o labirinto e se perde nele. Sua lógica ("trabalhar para ser alguém") desmorona sobre ele.

Wendy, por outro lado, é a sobrevivente da recusa. Sua fragilidade não é fraqueza, mas sim uma estratégia. Ela mantém a aparência de normalidade ao interpretar o papel de esposa feliz. Quando o hotel fecha, a atuação termina. O terror não está no machado, mas no reconhecimento. Ela vê o que sempre evitou: o marido que ela ajudou a esconder.

A família Torrance é um retrato da América construída sobre recusas. Kubrick insere as evidências no cenário: as latas de fermento Calumet, com a imagem do chefe indígena; o diálogo sobre o hotel construído sobre um cemitério nativo; a decoração inspirada na arte Navajo. O patriarca branco que cuida da propriedade é também aquele que ignora o sangue sob o chão. "Você sempre foi o zelador." A frase de Grady ressoa como uma sentença histórica.

O hotel se chama Overlook: observar de cima e, ao mesmo tempo, ignorar. Essa é a ironia central. O zelador "cuida" do espaço que também deve esquecer. Jack aceita o papel com devoção. Seu colapso é o da própria ideia de dominação masculina (uma masculinidade que tenta controlar o que já está morto).

No fim, a fuga de Danny vai além de somente sobreviver. É um gesto simbólico. O menino refaz seus próprios passos, apaga o rastro, desfaz o caminho do pai. Ele não vence o labirinto: ele o desprograma. Essa inversão é o único raio de esperança no filme. O trauma só se quebra quando alguém se recusa a continuar o padrão.

O Iluminado é sobre fantasmas, sim. Mas não os do hotel. São os fantasmas da história americana: o patriarcado, o alcoolismo, a violência negada, a fundação construída sobre o sangue indígena. O horror que Kubrick filma não é apenas sobrenatural, é psicológico, é o retorno do que foi enterrado vivo. O hotel é a mente. A neve é o silêncio. E o frio que permanece no fim não é o do inverno, mas o da consciência.


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