Baby Gang: entre a crônica das ruas e o choque com o sistema

Baby Gang: entre a crônica das ruas e o choque com o sistema

Nascido na fronteira invisível entre dois mundos, Zaccaria Mouhib transformou o rap em um espelho brutal de sua própria sobrevivência.

Zaccaria Mouhib, mais conhecido como Baby Gang, nasceu em 2001 na província de Lecco, no norte industrializado da Itália, filho de imigrantes marroquinos. A geografia da sua vida é feita de contrastes: de um lado, as fachadas ordenadas das pequenas cidades lombardas; do outro, os bairros populares onde imigrantes e descendentes se amontoam, entre empregos precários, olhares desconfiados e a constante sensação de ser visitante no próprio país.

A infância foi marcada pelo trânsito entre realidades: em casa, o árabe marroquino, o cheiro de especiarias e a religiosidade muçulmana; na rua, o idioma áspero da sobrevivência, entre campos de futebol improvisados e as primeiras lições sobre códigos que regem a vida de periferia. Violência, racismo e exclusão não eram conceitos abstratos, mas presença diária.

Ainda adolescente, encontrou no rap o canal para transformar essa vivência em discurso. Mais do que um gênero musical, era um mapa para entender o mundo, com coordenadas vindas do rap francês de Marseille, do trap espanhol e do drill britânico. O nome “Baby Gang” era a confissão crua de um garoto crescido entre grupos de rua, onde a lealdade e o risco andam juntos.

Por volta de 2018, começou a lançar músicas de forma independente, subindo faixas para plataformas digitais sem estratégia elaborada, mas com uma urgência que compensava qualquer falta de polimento técnico. 

Essas narrativas tinham endereço e rosto. Baby Gang falava diretamente com filhos de imigrantes que viam o racismo não apenas no discurso, mas nas portas que se fechavam. Ao mesmo tempo, despertava incômodo em setores mais conservadores da Itália, onde a figura do jovem marroquino periférico é frequentemente associada ao crime, estigma que o próprio artista denuncia, apontando para um sistema judicial e policial seletivo.

No norte da Itália, especialmente na Lombardia, a comunidade marroquina é uma das mais expressivas do país. Muitas dessas famílias carregam décadas de trabalho pesado em fábricas, construção civil e serviços, mas ainda enfrentam marginalização e barreiras invisíveis à integração. Baby Gang transformou essa ferida coletiva em combustível artístico, criando um discurso que mistura orgulho das raízes, denúncia social e crônica de rua.

Sua estética bebe do drill britânico e do rap francês, mas é filtrada pelo imaginário marroquino. Os videoclipes são retratos vivos de bairros periféricos italianos: ruas estreitas, fachadas desgastadas, motos acelerando, carros de luxo estacionados ao lado de blocos residenciais, grupos de amigos no enquadramento. Em alguns, frases em árabe ou símbolos islâmicos aparecem como afirmação identitária, lembrando que a lealdade à própria origem é parte central da narrativa.

A carreira de Baby Gang é indissociável de seu histórico judicial. Já foi preso várias vezes, enfrentando acusações que vão de assalto à mão armada a posse ilegal de armas. Para seus fãs, essas passagens pela prisão reforçam a autenticidade das rimas; para a mídia tradicional, alimentam o estereótipo de que o rapper é apenas mais um produto de um ciclo de violência. Ele rebate dizendo que é alvo não por seus atos, mas por sua origem e por falar abertamente sobre realidades que o Estado prefere ignorar.

Essa tensão se tornou quase parte do seu material artístico. Em entrevistas, Baby Gang descreve a prisão como um “sistema paralelo” que molda comportamentos, e suas músicas funcionam como um diário dessa vivência. Não há idealização romântica, apenas a exposição de um cotidiano brutal.

Em 2021, o álbum “Delinquente” marcou seu momento de consolidação, trazendo colaborações com outros nomes importantes do rap italiano. O trabalho ampliou seu alcance, chegando a comunidades marroquinas em países como França, Espanha, Bélgica e Holanda. A recepção foi dupla: enquanto críticos reconheceram a força lírica e a consistência estética, detratores o acusaram de glamourizar a criminalidade.

Hoje, Baby Gang é um dos nomes mais discutidos do rap europeu, tanto pelo impacto cultural quanto pelas polêmicas. É o retrato de uma geração que nasceu entre culturas, carregando mais de um idioma na boca e mais de uma bandeira no peito, mas sem se sentir plenamente aceita em nenhuma.

A trajetória de Baby Gang é, em última instância, uma narrativa sobre pertencimento. Pertencer à família, ao bairro, à cultura de origem, ao país que te viu nascer. Ou não pertencer a lugar nenhum, e fazer da música o único território possível.


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