Arthur Verocai e os discos queimados
Mais de 50 anos e Arthur Verocai ainda encanta com seu disco de estreia, que por muitos anos foi esquecido no limbo da indústria musical.

No final dos anos 2000, um disco raro apareceu em uma loja de vinil em Tóquio. O produtor Alexandre Kassin, muito amigo do filho de Verocai, se deparou com uma cópia do álbum solo de Arthur Verocai, lançado em 1972, um dos LPs brasileiros mais cultuados fora do país. O mesmo Alexandre, chegou a avisar Arthur em seu estúdio por diversas vezes, mas depois de décadas em que o disco foi esquecido, era difícil acreditar que tinha se tornado um ícone fora do país. Pouco tempo depois, a gravadora americana Ubiquity procurou Verocai para relançar a obra nos Estados Unidos. Assim começava a trajetória da redescoberta de um dos discos mais sofisticados e experimentais da música brasileira.
Na época do lançamento, Verocai tinha 27 anos e uma carreira respeitável como arranjador, trabalhando com nomes como Ivan Lins, Jorge Ben e Elis Regina. Incentivado por uma amiga cantora, gravou seu primeiro disco solo com total liberdade artística e orçamentária. O resultado foi uma obra complexa, que flertava com jazz, soul, psicodelia, samba e MPB, recheada de arranjos orquestrais e letras carregadas de críticas veladas ao regime militar.

Mas o Brasil de 1972 não estava preparado para aquele som.
O disco foi lançado na mesma época do fenômeno Secos & Molhados, que tomou conta das rádios. O álbum de Verocai, encalhou. Em pouco tempo, a Continental, com dificuldades financeiras, decidiu recolher as cópias e derretê-las para reaproveitar o material em LPs de maior demanda. Uma prática comum, mas que transformou o disco em item raríssimo em solo nacional, já que basicamente teve sua presença queimada (literalmente).
Porém, por mais que seja comum essa realização do derretimento, é simbólico demais para um disco que se tornou um marco da música brasileira. O ato de derreter os discos soa como apagar uma memória, transformar toda a construção em nada.

O fracasso teve consequências profundas. O experimentalismo do disco afastou clientes do arranjador, que se viu obrigado a migrar para o mercado de jingles para sobreviver, assinando composições para marcas como Brahma e Banco Delfin.
Durante anos, Verocai evitou falar do disco. Escondeu a obra em casa, negava quando o filho Ricardo pedia para ouvir. Mas Ricardo ouvia escondido. “Era ele escondendo de mim e eu escondendo dele”, contou em entrevista para a BBC. O disco virou um segredo íntimo, adormecido. Para o artista, era melhor esquecer que aquilo aconteceu, do que tentar buscar porquês.
Essa parte da história soa como curiosa para mim. Foram mais de 20 renegando o disco para si mesmo, um disco que eu, muito mais novo do que esse álbum e que já escutei como um artista sublime, e como ninguém entendeu a complexidade e qualidade à época? Não entra na minha cabeça escutar, ler, que meu álbum favorito da vida não foi considerado colossal desde o início. Enfim, vamos voltar a história.

O produtor Alexandre Kassin, muito amigo do filho de Verocai, alertava o músico que seu disco era muito bem falado lá fora, encontrando até mesmo uma cópia do LP em uma loja de Tóquio. O dono explicou que aquele era um dos vinis brasileiros mais cultuados fora do Brasil. Porém Arthur seguia irredutível sobre o assunto, não era capaz de crer e achava tudo aquilo bobagem.
Ao abrir um site em 2002, logo em seguida a gravadora americana Ubiquity entrou em contato com Verocai pedindo autorização para relançá-lo nos EUA, colocando o disco nas prateleiras em 2003.
É o famoso ditado, onde há fumaça, há também fogo. A procura pelo disco e seu relançamento não eram atoa, principalmente vindo de uma indústria que consome tanto quanto a américa.
A redescoberta foi rápida. DJs e produtores norte-americanos, principalmente da cena do hip-hop, começaram a samplear as faixas. 9th Wonder usou “Caboclo” em uma música do Little Brother. MF Doom sampleou “Na Boca do Sol” em “Orris Root Powder”. Ludacris foi além: ligou pessoalmente para pedir autorização. A faixa foi parar no disco Theater of the Mind, de 2008, vendido aos milhões.
Música em que MF DOOM sampleia "Na Boca Do Sol"
Com o novo interesse, Verocai foi convidado a apresentar o disco ao vivo pela primeira vez. Em 2009, no festival Timeless, em Los Angeles, regeu uma orquestra para um público de 1.500 pessoas. “O pessoal lá não me amava, me idolatrava”, relembra. A emoção era nítida: aquele trabalho renegado por décadas agora era tratado como obra-prima.
Parte da apresentação em Março de 2009.
Aos poucos, o disco passou a figurar entre os mais cultuados da música brasileira. Não pelo passado, mas pela reinvenção. Virou objeto de estudo, foi relançado em vinil no Brasil, tema de documentários, e levou Verocai a uma turnê internacional.
Mas sua história ainda provoca reflexões. O apagamento de Verocai, como o de tantos outros arranjadores e músicos fora do eixo da grande indústria, mostra como a música brasileira ainda negligencia parte de seus maiores talentos. O mercado não estava preparado para ele. O país, talvez, também não.
Hoje, o LP de 1972 vale centenas de dólares em sebos e coleções. A obra que foi derretida virou relíquia. E o maestro que ficou calado por décadas, encontrou voz em palcos do mundo inteiro.
Esse texto é dedicado para um grande amigo, um abraço Gustavo.







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