Anarcopunk: o movimento que subverteu os valores do punk no Brasil

A emergência do anarcopunk no Brasil explica como uma cena musical periférica se converteu, no fim dos anos 1980, em um campo organizado de prática anarquista, militância cultural e atuação coletiva.

Anarcopunk: o movimento que subverteu os valores do punk no Brasil


Do punk de choque ao anarcopunk de organização

Na segunda metade dos anos 1970, o punk surgiu como resposta direta ao esgotamento social e econômico vivido por parcelas da juventude urbana na Inglaterra e nos Estados Unidos. A recusa às normas, o choque estético e a autodepreciação funcionaram como linguagem imediata para expressar frustração, tédio e descrença no futuro. Ao longo dos anos 1980, essa identidade se espalhou globalmente e passou por um processo de politização gradual.

No Brasil, o punk se consolidou inicialmente como cena musical e comportamental, especialmente em São Paulo, impulsionado por bandas como Restos de Nada, Ratos de Porão, Cólera, Inocentes e Garotos Podres, além de coletâneas e registros que marcaram o período.

Esse primeiro ciclo foi fundamental para introduzir o punk no país, mas não esgotou suas possibilidades. A partir da segunda metade da década de 1980, novos grupos passaram a questionar os limites da cena centrada apenas na música, nas gangues e no confronto físico.

Banda Ratos de Porão.

Esse deslocamento abriu espaço para o surgimento do anarcopunk: uma vertente que buscou articular a estética punk com a tradição política do anarquismo. O objetivo não era abandonar o punk, mas reorganizá-lo como ferramenta de ação social e política.

A formação de uma vertente política

Antes mesmo da consolidação de siglas ou movimentos formais, já existiam experiências isoladas que apontavam nessa direção. Em 1987, por exemplo, a banda Disunidos, de João Pessoa, já se declarava anarco-punk, indicando que a ideia não se restringia ao eixo Rio–São Paulo. Ainda assim, foi na capital paulista que o anarcopunk ganhou maior densidade organizativa.

O contato entre jovens punks e militantes anarquistas mais antigos ocorreu principalmente em espaços como o Centro de Cultura Social (CCS) e a Confederação Operária Brasileira (COB). Esse encontro geracional foi marcado por aproximações e conflitos. Enquanto os anarquistas históricos preservavam práticas mais teóricas e formais, os punks traziam uma cultura visual, musical e comportamental que causava estranhamento.

Desse atrito surgiram coletivos e núcleos que passaram a atuar de forma autônoma, como o Núcleo Anarquista Ação Radical (NAAR), o Coletivo Altruísta, o Anarquistas Contra o Racismo (ACR), o Coletivo Anarco-Feminista e, mais tarde, o KRAP (Koletivo de Resistência Anarco-Punk). No início dos anos 1990, essa articulação se consolidou com o surgimento do MAP: Movimento Anarco-Punk.

Paralelamente, bandas como Pós-Guerra, Metropolixo, Execradores, Vala Negra, Castitate Sociale e Ira dos Corvos passaram a expressar essa postura também na música, integrando discurso político, prática coletiva e produção cultural independente.

Prática, publicação e militância

O anarcopunk brasileiro se estruturou a partir de três frentes principais: organização coletiva, produção cultural e intervenção política. Zines como O Iconoclasta, Desobedecendo e Atitude Pessoal funcionaram como instrumentos centrais de circulação de ideias, debates e informações. Diferentemente dos zines punks anteriores, esses materiais priorizavam textos políticos, reflexões ideológicas e análises sociais, muitas vezes sem qualquer referência musical.

As atividades extrapolaram os shows. Manifestações antimilitaristas, protestos contra guerras, ações antirracistas, debates públicos, bibliotecas autogestionadas e experiências de vida comunitária passaram a fazer parte do cotidiano desses coletivos.

Arquivo do clássico fanzine United Forces - Imagem de: Marcelo R. Batista.

Nos anos 1990, os anarcopunks estiveram entre os primeiros grupos da cena hardcore a pautar temas como direitos dos animais, vegetarianismo, feminismo, ecologia, permacultura e diversidade sexual, além de participarem da organização inicial do Dia do Orgulho Gay em São Paulo, em 1997.

Geograficamente, os pontos de encontro se espalharam pelo centro da cidade, como a Praça Ramos, a Galeria do Rock, as escadarias do Teatro Municipal e a Estação da Luz. A partir desses núcleos, a vertente se expandiu para outras regiões da capital, para o ABC Paulista, Guarulhos, Zona Oeste e, posteriormente, para outros estados do país.

Conflitos, limites e transformações

O processo não foi linear. O anarcopunk enfrentou disputas internas, divergências ideológicas e fragmentações, especialmente com o avanço do straight edge e, em alguns casos, de posições mais rígidas e excludentes. Parte dos coletivos se dissolveu, outros se reformularam, e muitos integrantes migraram para novas frentes de atuação cultural ou política.

Apesar disso, o impacto do movimento se manteve. Ao romper com a lógica das gangues e com a centralidade exclusiva da música, o anarcopunk redefiniu o papel do punk no Brasil. Ele transformou uma identidade considerada marginal em plataforma de formação política autodidata, organização coletiva e intervenção social.

Um legado que ultrapassa a cena

O anarcopunk não se consolidou como movimento de massas, nem se propôs a isso. Seu legado está na forma como reorganizou práticas, discursos e modos de agir dentro e fora da cena punk. Ao articular estética, política e cotidiano, contribuiu para atualizar o anarquismo no Brasil e influenciou gerações posteriores de coletivos culturais, editoriais independentes e iniciativas autogestionadas.

Espetando o cabelo - Foto: Maria Helena/Arquivo pessoal.

Mais do que um subgênero musical, o anarcopunk se estabeleceu como um método de ação: transformar indignação em organização e barulho em prática política.

Essa matéria foi escrita com base em quatro textos produzidos por Eduardo Ribeiro.
Para mais informações confira os textos aqui.


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